sábado, 13 de fevereiro de 2016

Cantares, Hilda Hilst

VII
"Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus.
Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitos
Porque me fiz tanto de ressentimentos
Que o melhor é partir. E te mandar escritos.
Rios de rumor no meu peito: que te viram subir
A colina de alfafas, sem éguas e sem cabras
Mas com a mulher, aquela,
Que sempre diante dela me soube tão pequena.
Sabenças? Esqueci-as. Livros? Perdi-os.
Perdi-me tanto em ti
Que quando estou contigo não sou vista
E quando estás comigo vêem aquela." (pg 23)

XXVII
"Amor agora
Meu inimigo.
Barco do olvido
Entre o teu ódio
E o meu navegar
Fico comigo.
Sopro, cadência
Meu hausto e mar
Navego a rocha
Somo o castigo
Deslizo, meu ódio-amigo,
Graça e alívio

De te alcançar." (pg 61)


XXXIX
"Escreveste meu nome
Sobre a água?
A fogo, na alma
Desenhei o teu

Grafismo iluminado
Imantado e novo

Teu nome e o meu.

Novo
Porque nunca se viu
Nome tão pertencido.
Antigo porque há milênios
Se entrelaçaram justos
No infinito.

E raro
Porque tingido de um mosaico vivo
De danação e amor.

Teu nome
Irmão do meu." (pg 73)

XLIV
"Lembra-te que morreremos
Meu ódio-amor.
De carne e de miséria
Esta casa breve de matéria
Corpo-campo de luta e de suor.

Lembra-te do anônimo da Terra
Que meditando a sós com seus botões
Gravou no relógio das quimeras:
'É mais tarde do que supões'.

Por isso
Mata-me apenas em sonhos.
Podes dormir em fúria pela eternidade
Mas acordado, ama. Porque a meu lado
Tudo se faz tarde: amor, gozo, ventura." (pg 80)

XLVI
"Talvez eu seja
O sonho de mim mesma.
Criatura-ninguém
Espelhismo de outra
Tão em sigilo e extrema
Tão sem medida
Densa e clandestina.

Que a bem da vida
A carne se fez sombra.

Talvez eu seja tu mesmo
Tua soberba e afronta.
E o retrato
De muitas inalcançáveis
Coisas mortas.

Talvez não seja.
E ínfima, tangente
Aspire indefinida
Um infinito de sonhos
E de vidas." (pg 82)

LII
"
Eu era parte da noite e caminhava
Adusta e austera
Sem luz nem aventurança.
Tu eras praia e dia
Um fogo branco
O rosto da montanha sobre a terra.
E juntamos a treva
Ao mar do meio-dia
Cristas aguadas, pontas
Trilhas fosflorescentes
Na vastidão das sombras
Mas um instante apenas.
Porisso é que caminho como antes
Adulta e austera.
Acrescida de véus me mostro aos viajantes:
Vês a mulher, aquela?
Dizem que a cara é de caliça e pedra.
Que a luz das ilusões passou por ela." (pg 89)

LXIII
"Tens a medida do imenso?
Contas o infinito?
E quantas gotas de sangue
Pretendes
Desta amorosa ferida
De tão dilatada fome.
Tens a medida do sonho?
Tens o número do Tempo?
Como hei de saber do extenso
De um ódio-amor que percorre
Furioso
Passadas dentro do vento?
Sabes ainda meu nome?
Fome. De mim na tua vida." (pg 100)

LXVII
"Vida da minha alma:
Um dia nossas sombras
Serão lagos, águas
Beirando antiqüíssimos telhados.
De argila e luz
Fosforescentes, magos,
Um tempo no depois
Seremos um só corpo adolescente.
Eu estarei em ti
Transfixiada. Em mim
Teu corpo. Duas almas
Nômades, perenes
Texturadas de mútua sedução." (pg 104)

LXX
"Poeira, cinzas
Ainda assim
Amorosa de ti
Hei de ser eu inteira.

Vazio o espaço
Que me contornava
Hei de Estar ali.
Como se um rio corresse
Seu corpo de corredor
E só tu o visses.
Corpo de rio? Sou esse.
Fiandeira de versos
Te legarei um tecido
De poemas, um rútilo amarelo
Te aquecendo.

Amorosa de ti
VIDA é o meu nome. E poeta.
Sem morte no sobrenome." (pg 107)


Citações do livro "Cantares", de Hilda Hilst. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário