domingo, 14 de fevereiro de 2016

O livro dos abraços, parte 2

O diagnóstico e a terapêutica 
"O amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos noite após noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes. O amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode impedir. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de alho, que nesse caso não serve para nada. O amor é surdo frente ao Verbo divino e ao esconjuro das bruxas. Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção capaz de evitá-lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia e tudo." (pg 53)
 
A noite/2
"― Arranque-me, senhora, as roupas e as dúvidas. Dispa-me, dispa-me." (pg 53)

Mapa-múndi/1
"O sistema:
Com uma das mãos rouba o que com a outra empresta.
Suas vítimas:
Quanto mais pagam, mais devem.
Quanto mais recebem, menos têm.
Quanto mais vendem, menos compram." (pg 60)

O medo 
"Certa manhã, ganhamos de presente um coelhinho das índias. Chegou em casa numa gaiola. Ao meio-dia, abri a porta da gaiola.
Voltei para casa ao anoitecer e o encontrei tal e qual o havia deixado: gaiola adentro, grudado nas barras, tremendo por causa do susto da liberdade." (pg 61)

Celebração de bodas da razão com o coração 
"Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração.
Sábios doutores de Ética e Moral serão os pescadores das costas colombianas, que inventaram a palavra sentipensador para definir a linguagem que diz a verdade.
 
Um sistema de desvínculos: para que os calados não se façam perguntões, para que os opinados não se transformem em opinadores. Para que não se juntem os solitários, nem a alma junte seus pedaços.
O sistema divorcia a emoção do pensamento como divorcia o sexo do amor, a vida íntima da vida pública, o passado do presente. Se o passado não tem nada para dizer ao presente, a história pode permanecer adormecida, sem incomodar, nos guarda-roupas onde o sistema guarda seus velhos disfarces.
O sistema esvazia nossa memória, ou enche a nossa memória de lixo, e assim nos ensina a repetir a história em vez de fazê-la. As tragédias se repetem como farsas, anunciava a célebre profecia. Mas entre nós, é pior: as tragédias se repetem como tragédias." (pg 64)

O sistema/1 
"Os funcionários não funcionam.
 Os políticos falam mas não dizem.
 Os votantes votam mas não escolhem.
Os meios de informação desinformam.
Os centros de ensino ensinam a ignorar.
Os juízes condenam as vítimas.
Os militares estão em guerra contra seus compatriotas.
Os policiais não combatem os crimes, porque estão ocupados cometendo-os.
As bancarrotas são socializadas, os lucros são privatizados.
O dinheiro é mais livre que as pessoas.
As pessoas estão a serviço das coisas." (pg 69)

Os índios/4
"Na ilha de Vancouver, conta Ruth Benedict, os índios celebravam torneios para medir a grandeza dos príncipes. Os rivais competiam destruindo seus bens. Atiravam ao fogo suas canoas, seu azeite de peixe e suas ovas de salmão; e do alto de um promontório jogavam no mar suas mantas e vasilhas. Vencia o que se despojava de tudo." (pg 74)

A pálida
"No café da manhã, minhas certezas servem-se de dúvidas. E têm dias em que me sinto estrangeiro em Montevidéu e em qualquer outra parte. Nesses dias, dias sem sol, noites sem lua, nenhum lugar é o meu lugar e não consigo me reconhecer em nada, em ninguém. As palavras não se parecem àquilo que dão nome, e não se parecem nem mesmo ao seu próprio som. Então não estou onde estou. Deixo meu corpo e saio, para longe, para lugar nenhum, e não quero estar com ninguém, nem mesmo comigo, e não tenho, nem quero ter, nome algum: então perco a vontade de me chamar ou de ser chamado." (pg 87)


Citações do "O livro dos abraços", de Eduardo Galeano.

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