sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

O livro dos abraços. (parte 1)

O mundo
"Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas. — O mundo é isso — revelou —. Um montão de gente, um mar de fogueirinhas. Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo." (pg 11)

Celebração da voz humana/2
"[...]Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for.
Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada." (pg 15)

Causos/2
"Nos antigamentes, dom Verídico semeou casas e gentes em volta do botequim El Resorte, para que o botequim não se sentisse sozinho. Este causo aconteceu, dizem por aí, no povoado por ele nascido. E dizem por aí que ali havia um tesouro, escondido na casa de um velhinho todo mequetrefi.
 Uma vez por mês, o velhinho, que estava nas últimas, se levantava da cama e ia receber a pensão. Aproveitando a ausência, alguns ladrões, vindos de Montevidéu, invadiram a casa.
Os ladrões buscaram e buscaram o tesouro em cada canto. A única coisa que encontraram foi um baú de madeira, coberto de trapos, num canto do porão. O tremendo cadeado que o defendia resistiu, invicto, ao ataque das gazuas.
 E assim, levaram o baú. Quando finalmente conseguiram abri-lo, já longe dali, descobriram que o baú estava cheio de cartas. Eram as cartas de amor que o velhinho tinha recebido ao longo de sua longa vida.
 Os ladrões iam queimar as cartas. Discutiram. Finalmente, decidiram devolvê-las. Uma por uma. Uma por semana.
 Desde então, ao meio-dia de cada segunda-feira, o velhinho se sentava no alto da colina. E lá esperava que aparecesse o carteiro no caminho. Mal via o cavalo, gordo de alforjes, entre as árvores, o velhinho desandava a correr. O carteiro, que já sabia, trazia sua carta nas mãos.
 E até São Pedro escutava as batidas daquele coração enlouquecido de alegria por receber palavras de mulher." (pg 39)

Os ninguéns 
"As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura. Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
 Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
 Que não são, embora sejam.
 Que não falam idiomas, falam dialetos.
 Que não praticam religiões, praticam superstições.
 Que não fazem arte, fazem artesanato.
 Que não são seres humanos, são recursos humanos.
 Que não tem cultura, têm folclore.
 Que não têm cara, têm braços.
 Que não têm nome, têm número.
 Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
 Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata." (pg 42)

Crônica da cidade do Rio de Janeiro 
"No alto da noite do Rio de Janeiro, luminoso, generoso, o Cristo Redentor estende os braços. Debaixo desses braços os netos dos escravos encontram amparo.
Uma mulher descalça olha o Cristo, lá de baixo, e apontando seu fulgor, diz, muito tristemente:
 — Daqui a pouco, já não estará mais aí. Ouvi dizer que vão tirar Ele daí.
 — Não se preocupe — tranquiliza uma vizinha —. Não se preocupe: Ele volta.
A polícia mata muitos, e mais ainda mata a economia. Na cidade violenta soam tiros e também tambores: atabaques, ansiosos de consolo e de vingança, chamam deuses africanos. Cristo sozinho não basta." (pg 45)

A fome/2 
"Um sistema de desvinculo: Boi sozinho se lambe melhor.., O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços." (pg 47)

A noite/1 
"Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta." (pg 52)



Citações do "O livro dos abraços", de Eduardo Galeano. <3

Nenhum comentário:

Postar um comentário