domingo, 20 de março de 2016

"Em suas andanças, Lorenzo gostava de ficar horas pelas matas vendo o trabalho dos pássaros, nunca iria matá-los, observando um ou outro veado campeiro, que também não seria alvo de sua espingarda, ou olhando o céu. De vez em quando, apontava a espingarda e dava um tiro para cima, fazendo voar uma nuvem embaralhada de passarinhos, em trajetórias trançadas, e ficava admirando a precisão do vôo das aves, tão acostumadas com a vida em grupo que uma não atrapalhava a outra.
  Ele queria passear pelas matas sem interferir em nada, apenas um observador, não tinha raiva do mato que crescia nem dos bichos que causavam danos à plantação, como a capivara. O seu prazer era ver, os outros gostavam de fazer. Queriam mudar a natureza, domesticá-la, ele preferia a ferocidade das matas, não perderia tempo tentando amansar aquela terra, via nela o animal arredio, então apenas a percorria com os olhos de fotógrafo, gostaria de ter dinheiro para comprar equipamentos fotográficos, era a profissão que mais o encantava, e talvez, cogitou isso apenas naquela hora, só tivesse vindo com os demais para poder conhecer estas paisagens, estes espetáculos secretos da natureza, o anarquismo não precisava ser criado, já existia na selva, a civilização era o fim desta força incontrolável.
  Lorenzo andava por toda a região e via que os agricultores queriam dominar a terra, torná-la submissa, só ele desejava sua beleza bruta. Nunca seria agricultor, descobriu isso em suas caminhadas, era um contemplativo, acreditava na anarquia como força primitiva, não como sistema ou ideologia civilizadora. [...] A natureza fala uma única língua, mas os livros, sempre confusos, falam muitos idiomas, até os mortos, e isso é a prova de que nunca dizem a verdade. Apenas a natureza não mente.
  Viu um lobo-guará em uma clareira. Já vira outros, e sempre os caçava. Quieto, procurou a melhor posição, apontou longamente a espingarda, acompanhando o movimento do animal, o dedo pronto no gatilho, um olho fechado, outro na mira, e quando o encontrou em posição de ser alvejado, o tiro o colheria indefeso, puxou o gatilho, despertando aquele barulho seco de metal contra metal.
  Raramente punha munição na espingarda, ela ficava quase sempre descarregada. Era sua máquina fotográfica. Mais um lobo-guará ficaria para sempre em sua memória. Um passo meio em falso que Lorenzo dera espantou o lobo, mas ele já estava morto, empalhado em suas recordações." (pág. 95)

-Citação do livro "Um amor anarquista", de Miguel Sanches Neto.

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